Saturday, January 20, 2007

Dia de Pescado

Hoje é dia de pescado. Feriado nacional. Esta nota de narrador era desconhecida a Jerónimo. A ele, pouco lhe importava o título ou responsabilidade devida a um dia de feriado, desde que não tivesse que trabalhar. Nascera com o odor de maresia a arrombar-lhe as fossas nasais mas nunca havia sido conquistado pelos prazeres do mar. Nem sequer sabia nadar. Poderíamos obviar desta informação um qualquer trauma ganho com uma qualquer experiência menos feliz. Mas não. A evolução dele, até à idade adulta, era recheada da nulidade emotiva e do desinteresse geral por qualquer actividade que, numa situação normal, levasse qualquer jovem ao rubro.
Isso tudo iria mudar hoje. Hoje era dia de pescado. Dia santo para os pescadores, que buscavam nos ritos de um paganismo idiota (adjectivação de Jerónimo), um escape às fobias dos potenciais, e estatisticamente plausíveis, naufrágios.
O ritmo da faca ensanguentada a bater na madeira gasta era seguido pelos sons mudos do embate do peixe gordo contra os alguidares de perímetro industrial. E esta combinação de sons repetia-se durante 8 horas por dia, durante 6 dias por semana. O domingo era o eco dos outros 6.
O trabalho moldava-lhe tiques nervosos e Jerónimo ia-se apercebendo deles. Essa percepção exponenciava a rapidez com que estes se fixavam no seu carácter. O piscar de olhos desenfreado para evitar que gotas de sangue se anichassem nos olhos era o tique mais irritante. Quando falava com outros, apercebia-se dos olhares fixos na sua debilidade e isso toldava-lhe a já pouca auto-estima. Outro tique que conservava, e que ousava tentar combater, era o de levar constantemente os dedos às narinas e de pensar que, lavasse as mãos, as vezes que quisesse, o odor a peixe era característica imutável da sua epiderme. Tinha pesadelos em que se via passear entre pescadores que, ao se aperceberem de escamas e guelras emergirem da sua pele odorenta, o perseguiam para o pescar por arrasto. Mas este não se encaixava no role de tiques referidos. Era sim mais uma achega para constatar a óbvia fragilidade crescente do carácter da nossa personagem.
Hoje era sábado. Para a maior parte das pessoas, esta infeliz coincidência, retirava muito a beleza do feriado, mesmo tratando-se de um feriado religioso. Para Jerónimo, a coincidência referida dilatava e antecipava-lhe o descanso semanal. Mas isso não lhe agradava por aí além. Não constituía um motivo de regozijo superior ao evento do feriado calhar num outro qualquer dia da semana. Pelo contrário. Receava que estes dois dias de descanso motivassem a tia Hectoria a desafiá-lo para algo que ele não quisesse fazer e que não tivesse a coragem de o dizer.
Jerónimo era um assumido cobarde e um acérrimo descrente da espécie humana. Sabendo que também não valorizava a fauna marítima, este egocentrismo forçado isolava-o de uma sociedade, da qual, nem o feriado mais popular fazia parte do seu diário de vida.
O armário entreaberto descobria um avental assassino, habituado a assistir ao desmembramento de inúmeros corpos. A mão pálida, pobre no número de dedos, penetrava a fresta deixada e diminuía a sombra, que encobria as manchas de sangue ressequido, entranhadas no referido avental. Eram dois os dedos em falta, mas apenas um acidente responsável por esse facto.

A primeira sensação foi da ausência total de som. O ruído das serras fora apagado pelo esmagar das falanges, pelo suster da respiração causada pela admiração pela forma impetuosa como o sangue jorrava dos membros decepados. O anelar era peso morto, ainda suspenso por uma pele ferida, enquanto que o mínimo jazia em cima da mesa vermelha. Ele não era propriamente o paradigma de herói e, no entanto, não gritou. Reteve o espasmo vocal normal perante a dor e o horror da cena. Os colegas de trabalho gritavam. Uns chamavam outros. Outros apressavam-se a ligar para um hospital. E Jerónimo estava de tal forma excitado com a dor e petrificado com a visão do seu dedo cortado que teve uma erecção, como nunca havia tido.
A enfermeira, que lhe suturou o que sobrava dos dois dedos, de quando em vez reparava no volume anormal nas calças dele. Jerónimo não tirava os olhos da agulha, acompanhando cada um dos 13 pontos. A dor excruciante havia sido a primeira sensação de prazer em toda a sua vida. A dor era a parceira, sujeito do seu primeiro encontro amoroso, e o primeiro beijo havia sido selado com linha cirúrgica.

A campainha tocou. Jerónimo cerrou os punhos em sinal de desagrado. Congelou o passo, que se preparava para dar, contraindo os músculos das pernas. O ritmo acelerado do seu coração era audível e, não fosse absurdo o pensamento, suporia que todo o prédio conseguiria ouvir esse mesmo bater orgânico.
Esta espécie de omissão da realidade agradava-lhe. O fingir não se encontrar em casa, como forma a evitar o confronto, com quem quer que estivesse do lado de fora da porta cinzenta, era também uma confortável via para não ter que explicar porque é que tinha a cama por fazer, louça por lavar, porque mantinha o mesmo avental durante 8 anos de carreira, e porque…

Jerónimo?

O silêncio continuou.

A campainha fez-se ouvir mais uma vez, mas de forma mais incisiva e continuada.

O silêncio voltou. De repente ouviu-se uma qualquer peça de louça partir.
As costas da tia Hectoria eram largas e os ombros descaídos criavam a imagem de uma mulher com aversão ao exercício físico desde criança, que provavelmente trabalharia em frente de uma secretária, sem tomar grandes decisões durante o seu percurso profissional. O cabelo desgrenhado, que encobria a zona occipital, indiciava que deveria viver sozinha, já que não existia um elemento crítico, que apontasse aquilo que ela não conseguia visualizar. Os sapatos gastos salientavam os seus problemas de coluna e revelavam que dava primazia ao conforto em detrimento da estética. As varizes, que lhe usurpavam cor de vida, assemelhavam-se a nódulos de plantas e desenvolviam-se como trepadeiras acopladas às pernas. Os tornozelos eram a base disforme das duas colunas que suportavam o corpo obeso.